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Ambiente escolar e marketing de indústrias não combinam

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No ambiente escolar, o aluno forma hábitos que o acompanharão por toda a sua vida. Por isso, ele precisa estar protegido dos interesses comerciais da indústria de alimentos ultraprocessados.

A expectativa para o ano letivo que se iniciou há pouco é de fortalecimento de políticas públicas de educação, incluindo as de alimentação escolar, tendo em vista que o combate à fome foi a principal bandeira eleitoral do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Não basta matar a fome, é direito de toda e de todo brasileiro ter acesso à alimentação adequada. Especialmente as crianças e os adolescentes, pessoas em condição peculiar de desenvolvimento e que têm prioridade absoluta, de acordo com a Constituição de 1988.

O ambiente escolar é mais do que um espaço seguro de convivência e aprendizado. Nele, o aluno forma hábitos que o acompanharão por toda a sua vida. Por isso, precisa estar protegido dos interesses comerciais da indústria de alimentos ultraprocessados.

Algumas empresas criam artimanhas sutis para ocupar esse espaço, como projetos de incentivo à alimentação saudável nas unidades de ensino – a despeito de venderem produtos com altos teores de açúcares, sódio e gorduras que são relacionados à ocorrência de doenças crônicas não transmissíveis (DCNTs) como obesidade, diabetes, doenças cardiovasculares e hipertensão. É o caso da Nestlé, a maior indústria de alimentos do mundo. Em 2021, a própria marca reconheceu, em relatório interno, que mais de 60% de seus produtos não são saudáveis e alguns deles “nunca serão”. Na tentativa de limpar sua imagem, desde 2018, a Nestlé premia anualmente projetos de escolas públicas brasileiras relacionadas ao desenvolvimento de hábitos saudáveis.

Mais grave ainda são as constatações constantes em relatório encomendado pelo Ministério Público do Trabalho (MPT), em conjunto com a Organização Internacional do Trabalho (OIT), de que as empresas do setor do cacau não adotam mecanismos, na prática, para avaliar as condições reais de trabalho em suas cadeias de valor. Foi identificado trabalho infantil e escravo na cadeia produtiva de cinco multinacionais no Brasil. Além disso, as ações relatadas de responsabilidade social corporativa não apresentam informações precisas e nem o histórico do acompanhamento da evolução dessa situação inaceitável de violações de direitos humanos nas etapas de produção. Para se ter uma dimensão, também na Costa do Marfim o setor do cacau enfrenta denúncias de trabalho infantil e análogo à escravidão em sua cadeia de fornecimento sem que sejam adotadas pelas empresas multinacionais ações efetivas para a abolição completa e imediata.

Enquanto o setor do cacau admite a exploração de crianças em vulnerabilidade socioeconômica, essas corporações transnacionais também adentram no ambiente escolar e incentivam o consumo de produtos a estudantes que, por sua idade, não compreendem o que está por trás do patrocínio à construção de hortas, refeitórios e outras iniciativas em suas escolas.

Outras empresas apostam em lobby no Legislativo para se beneficiar de políticas públicas exitosas. Desde sua criação, há mais de sessenta anos, o Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae) é alvo de investidas da indústria alimentícia. A mais recente ocorreu durante a pandemia de Covid-19. O setor produtivo de lácteos tentou alterar a legislação para garantir o percentual mínimo de 40% dos recursos repassados pelo Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE) para a aquisição de leite. A proposta também retira a prioridade de compra concedida à agricultura familiar, aos assentamentos da reforma agrária, a comunidades indígenas, quilombolas e povos tradicionais. O Projeto de Lei (PL) nº 3.292/20, do deputado federal Vitor Hugo (PL/GO, ex-PSL) foi aprovado em caráter de urgência na Câmara dos Deputados e, atualmente, está parado no Senado.

O Pnae teve papel importante para que o Brasil saísse do Mapa da Fome, em 2016, e contribuiu para diminuir os índices de desnutrição. É reconhecido internacionalmente como uma política pública essencial para garantir a segurança alimentar de meninas e meninos e serve como modelo para diversos países.

Um dos objetivos do Pnae, de acordo com a Lei nº 11.947/2009, que o regulamenta, é contribuir para a formação de hábitos alimentares saudáveis a partir da oferta de refeições adequadas às necessidades nutricionais de pessoas em desenvolvimento. Por isso, 30% dos recursos do Programa são destinados à aquisição de produtos da agricultura familiar local, o que assegura o acesso a alimentos apropriados do ponto de vista nutricional, beneficia a economia local, privilegia a sustentabilidade e o respeito às tradições regionais.

Recentemente, o governo federal anunciou o aumento do recurso destinado ao Pnae. São mais de 50 milhões de refeições distribuídas por dia para cerca de 41 milhões de estudantes da educação básica pública em todo o país. O valor anual de R$ 4,1 bilhões está defasado e não tem reajuste desde 2017. No atual contexto, com 33 milhões de brasileiros passando fome, a alimentação escolar é a única garantia de, pelo menos, uma refeição diária para muitas crianças e adolescentes.

É urgente fortalecer políticas públicas de promoção e garantia de direitos de crianças e adolescentes, como o PNAE. É preciso também que haja um esforço coletivo – com a participação da sociedade civil organizada – de construção de políticas públicas de regulação das ações da indústria de alimentos ultraprocessados, além da disseminação massiva de informações qualificadas sobre saúde para a efetivação do direito humano à alimentação adequada.

Janine Giuberti Coutinho é coordenadora do Programa de Alimentação Saudável no Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec).

Paula Johns é diretora executiva da ACT – Promoção da Saúde.

 (Foto: Unsplash)

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