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Comunidade tradicional sertaneja cria animais soltos na mata seguindo práticas adotadas desde o início da ocupação humana na região
O som dos cincerros, instrumento pendurado no pescoço das cabras e ovelhas soltas no quintal, soa como agogôs de um afoxé constante. Livres, os animais criados pela comunidade de fundo de pasto de Angico e Barriguda, em Canudos, interior da Bahia, reproduzem um modo de viver e criar que remonta a história da ocupação humana pós-colonização no Sertão baiano.
“O fundo de pasto é uma área que temos reservada para os animais, para criar solto. É uma área nossa e todos os moradores daqui, se não fosse essa área ninguém criava nada”, relata Tereza Aquilina da Conceição.
Com mais de 80 anos de idade, ela se dedica à criação de caprinos e ovinos desde os 16. Todas as manhãs, os animais são soltos na Caatinga, onde consomem espécies de pasto nativo do bioma e voltam sozinhos para a propriedade.
Assim como outros moradores, ela não sabe precisar quando seus antepassados chegaram na região, marcada por uma das revoltas populares mais marcantes da República, a guerra de Canudos. “Eu não sei contar muito da guerra. Meus avós participaram e contavam que meu tio era afilhado de Antônio Conselheiro”, recorda a produtora.
O diretor do parque estadual de Canudos, Luiz Paulo Neiva, destaca que a cultura desses povos tradicionais ainda guarda os valores que permeavam o movimento liderado por Antônio Conselheiro no século XIX. Vizinho às comunidades de Angico e Barriguda, o sítio arqueológico ainda preserva a memória da guerra que levou à morte de mais de 20 mil civis.
“Essas pessoas que vivem até hoje na região têm heranças que trazem ainda o mesmo sentimento de preservação e uso adequado da Caatinga. E isso é fantástico, porque o legado de Antônio Conselheiro vai se perpetuando não só pelos livros, mas pela presença dessa população que está aqui e que cultiva esse sentimento”, observa.
Luta e Resistência
O braço armado do Estado já não é mais uma ameaça para os sertanejos de Canudos, mas a luta pela permanência na região ainda é parte do cotidiano de Tereza e seus vizinhos. As tentativas de invasão por grileiros são constantes e não se intimidam com o reconhecimento de Angico e Barriguda como comunidades tradicionais pelo Governo Federal desde 2007.
Como resultado, cada vez mais animais disputam a mesma área para se alimentar, comprometendo a capacidade de suporte das áreas comuns ainda hoje ameaçadas. “Quem vendeu as terras a fazendeiros hoje está sofrendo e os animais deles estão vindo para o fundo de pasto da gente”, relata Tereza.
A assessora técnica do Instituto Sociedade População e Natureza (ISPN), Jéssica Pedreira, explica que a venda de áreas desses territórios é, via de regra, ilegal, e ocorre dentro de um processo de grilagem de terras bastante presente na região.
“Essas comunidades são muito assediadas por megaempreendimentos, sobretudo do agronegócio, mineração e energia. E a relação entre esses empreendimentos e essas comunidades nem sempre é pacífica”, relata Pedreira.
Único bioma exclusivamente brasileiro, a catinga também é uma das áreas maias ameaçadas pelo desmatamento no país. De acordo com números do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), 3,2 mil quilômetros quadrados de vegetação nativa foram desmatadas no bioma em 2023, aumento de 23% em relação ao ano anterior. Desse total, 37% ocorreu na Bahia.
Apesar de reconhecidas por lei, as comunidades de fundo de pasto não possuem título definitivo de suas terras. Na Bahia, o esse direito se dá por contratos de concessão firmados com o Governo do Estado por um prazo determinado. “Não é um direito definitivo, o que traz fragilidade para as comunidades estarem no território”, destaca a assessora técnica do ISPN.
O filho de Tereza, Lúcio Conceição Santos, divide as ameaças enfrentadas por sua comunidade entre aquelas de curto, médio e longo prazo. “No longo prazo, estão os parques eólicos e fazendas solares. No médio prazo, os fazendeiros que estão chegando no município e comprando terras”, afirma o produtor. Ele explica que, mesmo quando esses empreendimentos ocorrem em outras comunidades, há reflexos nas demais áreas de fundo de pasto localizadas no entorno.
“Basta cercar uma área vizinha, onde os animais de outras pessoas se alimentam. Quando isso acontece, esses animais irão se alimentar em outras áreas de fundo de pasto e com isso a alimentação acaba mais rápido, a Caatinga fica um pouco judiada”, explica o produtor.
Atento à disponibilidade cada vez menor de alimento na Caatinga, reflexo não só do cercamento de áreas, mas também do crescimento do rebanho da sua própria família, ele tem buscado investir no melhoramento genético do seu rebanho.
Com a introdução de animais melhoradores registrados, ele conseguiu reduzir de cem para cerca de 40 animais o total de caprinos e ovinos mantidos na sua propriedade sem perder produção. Paralelamente, ele também tem investido na produção de silagem tanto de grãos quando de podas realizadas em espécies nativas da própria Caatinga.
Com o resultado, ele pretende convencer outros criadores da sua comunidade a investirem em animais melhoradores visando não só o lucro, mas também a preservação da Caatinga.
“O fundo de pasto é o mesmo que tínhamos há muitos anos enquanto os animais vão aumentando. Por isso é importante o melhoramento genético para ter menos animais, menos trabalho e mais lucro. Isso é bom para a comunidade, para os produtores e para a Caatinga, que vai agradecer”, completa.
Fonte: Globo Rural