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Escutar a “voz da água”, tão maltratada pelas poluições e interesses de “poderosos”; defender o direito do acesso a esse bem natural, que ainda é negado para populações rurais; e reconhecer a importância das cisternas para a garantia de água de qualidade. Foi com uma mística assim, de mãos dadas, abraçando uma cisterna e reflexões significativas para os tempos atuais, que o Seminário sobre “Sistemas de abastecimento comunitário rural, de água de uso doméstico” começou.
E as provocações dessa primeira parte da programação nortearam boa parte das partilhas do público presente. Na mesa de discussões com a participação de representantes das comunidades, ficou evidente a importância da organização social e do espírito comunitário, em que a partilha e o cuidado coletivo ainda prevalecem.
“Água é vida, não [se] nega água pra ninguém!”, enfatizou a dona Ivonete Santos, da comunidade Negros, em Remanso-BA. A agricultora, que utiliza a água de emergência, de um poço, para produzir forragem para a criação, faz questão de partilhar a água com outras pessoas da comunidade.
A presidente da Associação da comunidade Raso, em Canudos, dona Valdines Mendes contou que antes as famílias sofriam muito com a falta de água, tinha que buscar longe, na vizinhança. Atualmente, Raso recebe água de uma adutora, mas dona Valdines destacou o papel da cisterna na trajetória das famílias na luta pelo acesso à água: “facilitou muito a cisterna da família, a cisterna de produção”.
Da mesma forma, a experiência da comunidade Açude da Rancharia, em Juazeiro, esteve entre os exemplos partilhados. O agente comunitário de saúde, Adailton Almeida , enfatizou, durante a mesa de discussão, toda a organização e luta da comunidade para garantir o saneamento básico. Atualmente, Açude é um exemplo inspirador e pioneiro de gestão comunitária do acesso à água, do sistema de coleta e tratamento de esgoto doméstico, com reúso de água e da coleta seletiva de lixo. Essas iniciativas contam com o apoio e parceria de instituições da sociedade civil, a exemplo do Instituto Regional da Pequena Agropecuária Apropriada (Irpaa); e de órgãos públicos, como: o Serviço de água e Saneamento Ambiental (SAAE) de Juazeiro e a Companhia de Desenvolvimento e Ação Regional (CAR), do Governo da Bahia.
Adailton pontuou que as casas de Açude da Rancharia são abastecidas com água de poço, utilizada para todas as necessidades das famílias. Mesmo assim, ele reforça que a comunidade “sempre lutou pela água de cisterna; nós sempre cuidamos, de fato, para que a gente tivesse canteiro produtivo, criação de galinha, a gente sempre fortaleceu a agricultura. A gente nunca deixou de estar no movimento de ampliar o acesso à água, de ter o cuidado com a água; e a gente começou a envolver a comunidade”.
Açude da Rancharia tem um Plano de Saneamento Básico Rural e um Regimento Interno, com os compromissos que cada pessoa assume diante da gestão comunitária dos serviços. Nesse sentido, Adailton aprofundou reflexões sobre a garantia dos direitos e o compromisso coletivo da comunidade.
Essas foram apenas algumas das discussões que surgiram na mesa inicial. Além da importância das cisternas, as participações do público presente evidenciaram ainda a urgente necessidade de garantir água potável para as famílias rurais, energia elétrica; a importância da fiscalização dos órgãos públicos e dos compromissos individuais para evitar desperdícios ou uso irregular das fontes de abastecimento comunitário de água.
Os interesses de políticos, e de quem tem a água como uma mercadoria, através dos carros-pipa, também foram pontuados no evento. Por exemplo, um dos relatos de agricultores chegou a apontar o fato de que é comum o fornecimento de água dos pipas estar condicionado ao alinhamento político com quem está na gestão dos governos nos municípios.
Já na segunda mesa do Seminário, com a participação da sociedade civil e do Estado, José Carlos Neri, responsável pelo Componente Social da CAR, apontou o exemplo do absurdo que acontece em muitos lugares que é a exigência para tirar a conexão das cisternas com as bicas das casas, como condição para receber água dos carros-pipa. Ele também questionou a estratégia de investir em fornecimento de água com carro-pipa, ao invés de potencializar ainda mais a oferta de cisternas. “Só em 2024, do programa Carro-Pipa do Governo Federal, foram gastos 500 milhões de reais. Dava para construir muita coisa, e olha que foi um ano bom de chuva, dava para fazer várias experiências”. Além disso, “é a água mais cara que tem”, acrescentou Neri, destacando o fato de que muitas das vezes nem é água potável.
Nesse mesmo momento, exemplificando em um cálculo aproximado, foi demonstrado que o valor daria para construir em torno de 60 mil cisternas de consumo (16 mil litros, cada) por ano, ou 30 mil de produção (52 mil litros).
“Já tivemos muitos avanços, [tem] o trabalho da ASA, a CERB, o SAAE, a EMBASA, as Centrais, só que não tem sido suficiente ainda. Precisamos continuar lutando porque a demanda ainda é grande”, defende José Carlos.
Entre outras reflexões, o coordenador do Eixo Clima e Água do Irpaa, André Rocha, alertou para a necessidade do uso cuidadoso das águas subterrâneas, para que aconteça como um “banco de sangue”, que necessita ser reabastecido; e ressaltou dados da demanda por tecnologias de captação e armazenamento de água da chuva. “Ainda tem 500 mil, pelo menos, à espera da primeira cisterna, se não, a adutora. E a cisterna de produção, que muitos utilizam pra uso doméstico, precisa ainda chegar, pelo menos, a outras 800 mil famílias”.
Comentando o fato das famílias precisarem utilizar a água, que seria para produção, André explica e chama a atenção para a necessidade de prover água para diversos usos:
“Uma reflexão é que realmente tem essa pressão do pipeiro, da empresa, dos políticos que gostam desse programa e fazem uso dele pra fins eleitoreiros; mas tem uma outra questão que a gente precisa considerar que é um fator de existência do carro-pipa: o volume de água que temos numa cisterna de 16 mil litros não atende às necessidades da limpeza doméstica (…) é claro que ela vai secar antes de 8 meses, como foi pensado, vai secar com dois meses, 3; às vezes, com menos de dois. E aí, se ela seca, o ‘jeito’ é o carro-pipa. Ele tá presente, para além daquele fator eleitoreiro, também por conta de faltar água pra muita gente, para as outras demandas de casa, que não só do consumo; aí a pessoa seca a cisterna antes do tempo”, avalia.
Essa realidade puxa outros debates, como a necessidade de saneamento rural, porque se as famílias passam a acessar mais água, consequentemente tem o aumento de esgoto. Por isso, André também enfatizou esse assunto e a importância de considerar as diversas necessidades de água que precisam ser atendidas: “(…) E assim (os avanços no acesso à água, chegada de tecnologias…) a gente vai aumentando essa demanda de água para fins não nobres e também vai gerando os problemas comuns na cidade, que é o esgoto; tem mais esgoto ao redor de casa (…), esse debate não pode andar separado (…) No meio rural, a gente precisa tratar a água em todo o seu contexto; e aí, a gestão não é só do abastecimento, mas de todas as águas”.
Também ao longo das discussões da segunda mesa do Seminário, André Rocha apresentou experiências já existentes sobre gestão coletiva ou compartilhada do abastecimento de água, principalmente as que foram visitadas durante a Caravana de Saneamento Rural, realizada pela Articulação Semiárido Brasileiro (ASA) em 2024.
Em resumo, existe a possibilidade da união de várias associações para criar uma “central de associações”, com estrutura administrativa, operacional e de desenvolvimento comunitário, por exemplo. A partir da autorização da Câmara de Vereadores, para funcionamento, a entidade passa a ter a condição de concessionária, o que otimiza questões administrativas para operacionalizar o atendimento às famílias. A central se responsabiliza pelas questões “maiores”, como as administrativas e financeiras; além de contar com a participação de representantes do poder público na diretoria. Na Bahia, tem o exemplo bem sucedido da Central de Associações Comunitárias para Manutenção dos Sistemas de Saneamento, sediada em Jacobina, que agrega mais de 70 associações e, além do município sede, já realiza esse tipo de serviço em Seabra e Caetité.
Para esse tipo de gestão, com protagonismo das comunidades, das associações, André enfatiza que é preciso:
“Reivindicar do Estado, apenas do Estado, a ação estrutural; e se dispor a compartilhar com o Estado a gestão, a administração. Há quem diga que isso é assumir o papel do estado; há quem diga que não, que isso é uma ação inteligente para poder ter, inclusive, o direito de cobrar. Não é novidade, na cidade, a gente não participa da gestão porque é passado para uma empresa, mas o usuário paga”. Uma iniciativa nesse sentido, de acordo com Rocha, “não desobriga o Estado das suas funções, ele continua sendo responsável pelas ações de saneamento (…) Cobrar do estado as coisas que a associação não consegue manter. Não tem a perspectiva do lucro, o serviço é mais acessível; mas também pode faltar capital para coisas como trocar uma bomba”, explica.
A integrante do SAAE de Juazeiro, Elaine Borges, também participou do evento. Além de responder questionamentos sobre diversos assuntos relacionados ao abastecimento nas comunidades rurais do município, se prontificou a continuar somando nesse diálogo com as organizações da sociedade civil e do poder público.
No final do Seminário, ficou evidente a importância de seguir essa articulação entre diferentes representações da sociedade, por isso, entre os encaminhamentos, foram apontados como próximos passos: provocar o envolvimento de outras entidades, a exemplo dos SAAE’s dos municípios e da Empresa Baiana de Águas e Saneamento (Embasa), que também atua no Território Sertão do São Francisco (TSSF); sistematizar essas informações e experiências de gestão compartilhada existentes; provocar audiências públicas municipais; e fazer incidência/mobilizar o Colegiado de Desenvolvimento Territorial (Codeter) para conhecer e, possivelmente, trabalhar pela replicação da experiência de Açude da Rancharia.
Outro destaque dos resultados desse Seminário, foi a definição de uma Comissão Territorial de Saneamento Rural, composta por representantes de comunidades/entidades de cada município do TSSF; além de instituições parceiras do Poder Público ou da Sociedade Civil. A proposta é fazer com que essa Comissão possa contribuir e potencializar junto ao Codeter, por exemplo, as discussões relacionadas ao abastecimento de água para consumo doméstico nas comunidades rurais.
O Seminário, que teve a participação de representantes de 6 municípios do Território Sertão do São Francisco, aconteceu na manhã e tarde da última quinta-feira (12), no auditório do Serviço Territorial de Apoio à Agricultura Familiar (Setaf) de Juazeiro e foi realizado pelo Irpaa, CAR e Setaf.
Texto e fotos: Eixo Educação e Comunicação do Irpaa