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Em sua 72ª edição, a tradicional Festa dos Vaqueiros de Curaçá, Bahia, realizada de 4 a 6 de julho, transformou a cidade em um palco de memórias e identidades. O evento mobilizou vaqueiros, vaqueiras, moradores(as) e visitantes em uma celebração que é, acima de tudo, um ato de resistência cultural.
Com o lema “Fé, cultura e tradição que unem o sertão”, o evento reafirmou a centralidade do vaqueiro na vida sertaneja. Ele não é apenas uma figura simbólica, mas também um guardião de saberes que são transmitidos entre gerações. Um desses espaços de memória viva é a Fazenda Saudade, local de acolhimento dos vaqueiros e vaqueiras, e onde tudo começa nas primeiras horas do sábado.
Fazenda Saudade
O encontro na Fazenda Saudade tem raízes profundas. O atual anfitrião, Salvador Lopes, mantém uma tradição iniciada por seu pai, Luizinho Lopes, e, antes dele, por Inácio Pereira Lima, antigo dono da propriedade. Foi ali que, ainda nos anos 1960, um gesto simples se transformou em ritual coletivo: Inácio convidou os vaqueiros que aguardavam os companheiros de montaria para tomarem café com ele antes de seguirem juntos rumo à festa do vaqueiro na sede da cidade. Os vaqueiros, que já traziam alimentos em seus alforjes, fizeram uma grande partilha. “Foi um momento muito bonito, que nasceu de forma espontânea”, explica Fernando Ferreira, diretor de Cultura de Curaçá.
Hoje, a Fazenda Saudade é o ponto de reencontro de vaqueiros de diversas regiões do município, da área de sequeiro à ribeirinha. O espaço simboliza a hospitalidade sertaneja, onde o café da manhã e o almoço são partilhados coletivamente, celebrando vínculos construídos ao longo do tempo.
Fernando Ferreira destaca que a Festa dos Vaqueiros é marcada por cultura, fé e paz. “Os vaqueiros de Curaçá, de toda a região e até de outros estados, fazem a festa acontecer no nosso município”, ele explica. “É uma festa de harmonia e de paz.
Um desfile de gerações
Na tarde de sábado, vaqueiros e vaqueiras saíram da Fazenda Saudade em um desfile que percorreu as ruas de Curaçá. Entre elas estava Marilene do Santo Sobral, uma das homenageadas da edição deste ano, que contou com orgulho sua trajetória. Nascida no Riacho do Gato, ela montou pela primeira vez aos 15 anos, ensinada pelo pai, de quem herdou a profissão, o amor pelos animais e a dedicação em cuidar deles. “O cavalo eu zelo, trato dele, para quando chegar a época da festa eu estar montada nele com meus amigos e amigas vaqueiras”, contou.
“Estou orgulhosa por ser a mulher que sou. Só deixo de andar quando eu não puder mais montar. Dou o maior valor à Festa dos Vaqueiros. É meu orgulho”, afirmou a vaqueira que teve seu nome em um dos circuitos da festa.
Essa passagem de bastão se revela também no olhar atento de Clara Nascimento, de apenas oito anos. Montada sozinha em seu cavalo pela primeira vez na festa, ela representa o futuro da tradição. “Sinto muito orgulho de andar de cavalo, gosto muito”, disse a pequena vaqueira. Clara aprendeu com o pai, que, por sua vez, aprendeu com o avô, mantendo viva uma linhagem de saberes e afetos que atravessa gerações.
Além das montarias e do aboio, a Festa dos Vaqueiros é também um palco da diversidade produtiva da região. A Feira de Artesanato e Gastronomia “Arte e Sabor” mostrou a riqueza produzida pela agricultura familiar e por empreendedoras locais. Para Cristiane Ribeiro, da Associação de Mulheres da Fazenda Esfomeado, que expôs doces, geleias e livros, a feira tem um papel fundamental: “Ela é o espaço em que essas pessoas, empreendedores, agricultura familiar, vêm trazer, mostrando o que eles têm de melhor, o que eles fazem”. Ela ainda completou, afirmando que a feira é uma vitrine da identidade do povo.
Domingo de Celebração e Reflexão
No domingo, a Praça Raul Coelho se transformou em uma igreja a céu aberto para a tradicional Missa dos Vaqueiros. A celebração foi conduzida pelo Bispo Dom Valdemir Vicente e pelo Frei Valdevan Correia, um momento em que religiosidade e cultura se encontraram.
O Frei Valdevan ressaltou que a festa tem um significado especial. Primeiramente, é uma oportunidade para agradecer a Deus por mais um ano, pelo dom da vida e pelo dom do vaqueiro. Ele também apontou que a festa serve para transmitir esses valores culturais às novas gerações, mantendo viva a tradição. Por fim, o frei lembrou que o evento é um momento de confraternização entre famílias e amigos. “Por isso, deve ser valorizada, ser salvaguardada a cultura dos vaqueiros”, concluiu o frei.
Um vaqueiro, muitas memórias
A Festa dos Vaqueiros é também memória viva. Aos 82 anos, o vaqueiro Otávio Santana é testemunha da transformação do evento. Presente desde a segunda edição, em 1954, ele viu a celebração crescer, ganhar palco, som e multidão. “A primeira que eu vi era só um sanfoneiro, um reco-reco, um surdo. Hoje, esse ‘somzão’ todo. Mas é festa, é evolução”, contou. “Me sinto orgulhoso de ainda estar aqui, inteiro, no meio dessa juventude. Isso me ajuda a viver.”
Otávio, que foi reconhecido com certificado de cultura vaqueira de Curaçá, guarda o documento com carinho. “Botei num quadro, estou com ele lá em casa, muito bom, e faço parte disso, e a minha cultura é a que eu acompanho”, disse ele, entre risos e orgulho.
Nívea Rocha, do Instituto Regional da Pequena Agropecuária Apropriada – IRPAA, resumiu o espírito da festa ao reforçar a importância das parcerias institucionais. “Enquanto instituição, reafirmamos a parceria e o compromisso de estar integrando políticas públicas que reafirmem a nossa cultura e celebrem sempre com festa a nossa resiliência e a nossa resistência, sobretudo para os homens e mulheres do campo e da cidade”, declarou a coordenadora Administrativa do Irpaa.
O Irpaa, em parceria com a Paróquia São Benedito, promoveu a Mostra Cultural Religiosa, o tradicional Encontro dos Vaqueiros na Fazenda Saudade e a Feira de Artesanato e Gastronomia. As ações contam com o patrocínio do Governo do Estado da Bahia, da Secretaria de Turismo da Bahia, da Prefeitura Municipal de Curaçá.
Texto e Foto: Agência Chocalho